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  • Foto do escritorLuis Edmundo Araujo

O 'bem viver' e o minério no Alto Rio Negro

Atualizado: 6 de mai. de 2020


Centro comunitário de Irari Ponta, no Alto Rio Negro

Parece enorme, mais intenso, com uma variedade nunca antes vista de nuances, o tom rosa do pôr do sol na terra indígena do Alto Rio Negro, ou então é só impressão, a influência de se estar numa das áreas mais preservadas da floresta amazônica. Anoitece na comunidade de Irari Ponta, à beira do Rio Içana, perto da foz que deságua no Negro, e o menino índio, com o auxílio da lanterna presa à cabeça pela tira de elástico, retira com a cuia a água acumulada na canoa, sobe na embarcação de madeira bem do tamanho dele, pequena, e sai remando entre troncos de árvores quase submersas para sumir fazendo a curva, ele e o facho de luz da testa adentrando na lagoa que, junto com o rio, abraça a aldeia.

“Ele vai buscar peixe. Botou anzol, armadilha, e agora tá na hora de pegar pro jantar”, diz, com a água do Içana na altura da cintura e dela pra cima, todo ensaboado, Juvêncio Cardoso, secretário-geral dos povos Baniwa e Coripaco na Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro, a Foirn. “Quando eu era criança também era responsável pelo peixe”, completa Juvêncio, que na língua de seu povo, Baniwa, se chama Dzoodzo. Ele é professor na comunidade onde nasceu e mora, Santa Isabel do Rio Ayari, outro afluente do Negro, ainda mais a noroeste dali, no alto da região da Cabeça de Cachorro, chamada assim pelo formato do mapa dos 79.993 quilômetros quadrados da terra indígena demarcada, colada à Colômbia e bem próxima à tríplice fronteira, também com a Venezuela.

"Nós estamos nessa idade bem vivida, no bem viver desde os nossos antepassados, mas imagine o que vai ser dos nossos filhos se nossos direitos forem extintos”

Junto com outras seis terras indígenas homologadas (Rio Apapóris, Balaio, Cué-Cué Marabitanas, Rio Téa e Médio Rio Negro I e II), o Alto Rio Negro forma a mais extensa bacia de água negra do planeta. O reconhecimento oficial disso se deu em março do ano passado, durante o 8º Fórum Mundial da Água, em Brasília, quando a Bacia do Rio Negro, onde vivem 23 povos indígenas, muitos deles misturados em 750 comunidades espalhadas por 11,2 milhões de hectares, recebeu o título de Sítio Ramsar, passando a ser considerada zona úmida de importância internacional. A Convenção Ramsar entrou em vigor em 1975 e tem o nome da cidade iraniana onde foi assinado, no dia de Iemanjá, 2 de fevereiro de 1971, o tratado que reconheceu a importância ecológica e os valores sociais, econômicos, culturais e recreativos das zonas úmidas. O tratado tem hoje 169 países signatários, entre eles o Brasil, que assinou o documento em 1993.

Casa em Irari Ponta

Juvêncio tomava banho no intervalo do encerramento da segunda oficina de meliponicultura da região. O encontro reuniu, em Irari Ponta, representantes de alguns dos 20 povos do Alto Rio Negro, a maior e mais populosa das sete terras da Bacia, declarada indígena em maio de 1996 e homologada em abril de 1998. “Muita coisa está sendo ameaçada. A gente se sente inseguro, preocupado. Nós estamos nessa idade bem vivida, no bem viver desde os nossos antepassados, mas imagine o que vai ser dos nossos filhos se nossos direitos forem extintos”, especulava, no calor abafado, molhado, do início da tarde, Carlos de Jesus, 44 anos, Baniwa, espécie de mestre-de-cerimônias da oficina, ao ser perguntado sobre este atual governo Bolsonaro.

Expressão corriqueira entre integrantes do movimento indígena e defensores da preservação, o “bem viver” é o índio, menino, indo buscar o peixe fresco do jantar com a noite caindo; é a vida livre, integrada à natureza da floresta e, no momento, ameaçada pela pauta, digamos, ambiental do governo federal. “Com esse conjunto de políticas desse presidente, Jair Bolsonaro, a intenção dele é extinguir os direitos indígenas”, vaticinava Carlos, que é professor itinerante, contratado pelo governo estadual do Amazonas para passar cada ano numa comunidade diferente, dando aulas multidisciplinares.

Dois dias antes, na noite de 22 de maio, o Plenário da Câmara dos Deputados, ao aprovar o relatório da Medida Provisória (MP) 870/2019, devolveu à Funai a competência para demarcar terras indígenas. Editada no primeiro dia do governo Bolsonaro, a MP 870 reduziu o número de ministérios, acabando com as pastas do Trabalho e da Cultura, entre outras, e retirou a Funai da jurisdição do Ministério da Justiça. A Fundação Nacional do Índio foi posta sob a benção da ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves. Com isso, a competência para demarcar terras indígenas foi entregue ao Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, ou seja, ao agronegócio. Seis dias depois da votação na Câmara, o Plenário do Senado, por 70 votos a favor e quatro contrários, ratificou a decisão dos deputados federais, mas o presidente, que durante a campanha defendia nenhum centímetro a mais de terra indígena demarcada, não desistiu.

Bolsonaro editou a MP 886, publicada no Diário Oficial de 19 de junho deste ano. Segundo a medida provisória, a reforma agrária, a regularização fundiária de áreas rurais, a Amazônia Legal, as terras indígenas e quilombolas são áreas de competência do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento. A Funai ficou no Ministério da Justiça, mas as demarcações voltariam para as mãos do agronegócio se o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Luís Roberto Barroso não concedesse liminar suspendendo a medida. Na quinta-feira, 2 de agosto, por unanimidade, o STF decidiu que as demarcações ficam com a Funai, ao vetar a MP do presidente. “Este governo quer é extinguir a Funai, que sempre teve um papel importante para legitimar nossos direitos”, resumiu Carlos, durante o primeiro intervalo das atividades do último dos quatro dias da oficina de meliponicultura, no mesmo centro comunitário onde se desenrolou todo o evento.

O campo de futebol e as casas

Do tamanho, mais ou menos, de uma quadra de vôlei, o galpão do centro comunitário tem o maior dos telhados das vinte e duas casas de Irari Ponta, incluindo a igreja, evangélica. Todas foram erguidas em volta do campo de futebol de gramado irregular, duro, e dimensões senão oficiais, perto disso. Pelo menos havia onze de cada lado, alguns de calção, meia ou chuteira, outros descalços, de calça e cinto, todos com espaço suficiente para jogar na pelada disputada na primeira pausa do último dia da oficina.

Em volta do gramado não há arquibancada nem cerca separando o campo de futebol das casas, mas há uma espécie de pavilhão, erguido a três degraus, altos, do chão. Cabem cerca de quarenta, talvez cinquenta pessoas, todas de pé, na construção de madeira crua, sem cadeira nem nada para sentar, porém coberta. Para quem queria assistir o jogo, era o único lugar protegido do sol inclemente àquela hora, três e tanto da tarde, além do banco lá longe, bem atrás do gol, já ocupado, todo ele na sombra de duas árvores, por seis adolescentes que mais riam ou brincavam entre si do que prestavam atenção na partida. Sem o acabamento caprichado da pintura das casas da comunidade, o pavilhão do campo de futebol tem a tinta do anúncio em azul, ao lado dos três degraus da escada de entrada: “Apoio: Ver Eder Lopez”.

A "quadra de futsal" da comunidade

Atrás do campo maior, como num complexo esportivo, a comunidade de Irari Ponta é dotada ainda de um campo de terra batida, que também tem seu pavilhão, esse ao nível do chão, menor, com ares de bar. Nas paredes estão pintados nomes de marcas de bebidas que provavelmente nunca estiveram por lá. Em cima, a ironia continua com a inscrição “quadra de futsal”, anunciando o campinho de terra batida. Foi com muita piada também, entre risos gerais da plateia, que o professor Carlos de Jesus apresentou a oficina de Irari Ponta, fazendo graça menos em português, mais em baniwa ou nheengatu, a chamada língua geral da região, levada pelos portugueses, derivada do tupi-guarani.

Da mesma forma que o tukano e o yanomami, nheengatu e baniwa são línguas oficiais do município de São Gabriel da Cachoeira, o mais indígena do país e terceiro maior em extensão, com seus 109.184,8 quilômetros quadrados que englobam quase toda a Cabeça de Cachorro do Alto Rio Negro, mais outras terras indígenas, como as dos yanomami, onde fica o Pico da Neblina, ponto mais alto do país, com seus 2.995,3 metros de altitude. São Gabriel da Cachoeira tem o Rio Negro correndo ao lado e maioria de 74% de indígenas entre seus 41.885 habitantes, incluindo os 26 mil das comunidades, de acordo com o Censo de 2010, do IBGE. De resto, no entanto, a cidade não difere muito, nem em tamanho, de muitas outras do interior do país em seu centro urbano, onde fica mais aparente o outro lado do “bem viver”, as agruras da população da floresta que, até hoje, sustentam o discurso de quem quer explorar a região, de quem é contra a demarcação.

Vencidas as duas horas e meia de vôo desde Manaus, a pobreza se mostra logo na saída do Aeroporto Regional de São Gabriel da Cachoeira (Uaupés), na beira da estrada, na forma de um barracão sem paredes, cujo telhado foi aumentado por lonas estendidas de todos os lados até as fileiras de pedaços de madeira enterrados, que sustentam varais improvisados, lotados de camisetas, vestidos, bermudas, todo tipo de roupa. Três sujeitos estão sentados na frente, juntos, como se conversassem, tendo de um lado dois meninos brincando sem camisa, só de short, e do outro o garotinho ainda menor, nu, com a barriguinha proeminente, arredondada. Dentro do barracão, na manhã chuvosa, parecem se comprimir, em redes ou no chão, mais pessoas, todas elas indígenas.

Barracão dos yanomami, à espera do conserto da ponte

“Todos são yanomamis ali”, afirma José Ribamar Caldas Lima Filho, chefe do Setor de Planejamento da Coordenaria Regional (CR) Rio Negro da Funai, coordenador substituto e ex-prefeito, o segundo a ser eleito na cidade, em 1988. “Eles vêm por um dia de barco até chegar na estrada, e aí começa a pior fase deles, da estrada pra cá”. Não há rodovia ligando os 852 quilômetros de Manaus a São Gabriel da Cachoeira. Além do avião, as opções são três dias de viagem de barco ou a lancha chamada de expresso, com motor mais potente, que reduz para 24 horas o tempo previsto da viagem entre a capital do Amazonas e a cidade colonizada pelos jesuítas, depois pelos salesianos, que lá chegaram em 1914.

O primeiro boom de crescimento foi no início dos anos 70, com o Programa de Integração Nacional instituído pelo Decreto-Lei 1.106, de 16 de junho de 1970, no governo do general Emílio Garrastazu Médici. “Duas estradas iam passar aqui, uma (BR 307) ia ligar Cucuí, que é na fronteira (tríplice, entre Brasil, Colômbia e Venezuela), ao Acre, passando em São Gabriel. A outra (BR 210) vinha de Macapá, Caracaraí (em Roraima), passava também aqui e ia em direção a Mitú, na Colômbia”, conta Ribamar. São Gabriel da Cachoeira foi o canteiro de obras principal do projeto. A cidade pequena, só com a missão e o internato dos salesianos, passou a receber várias instituições, entre elas as Forças Armadas, que mantêm até hoje presença maciça no município com 150 quilômetros de fronteira com a Colômbia e com a Venezuela.

“Chegaram pra fazer esse trabalho, aí foi gente que veio do interior pra cá, pra trabalhar, e a cidade cresceu um pouco”. As estradas, no entanto, jamais foram concluídas. “Daqui até Cucuí, conseguiu, 205 quilômetros, mas, praticamente, fica uns seis meses parada, lama, chuva. A que vinha de Caracaraí pra cá ficou só duzentos e pouco quilômetros lá, e daqui também só 80 quilômetros, ficaram 600 quilômetros aí que não se ligaram”, explicava José Ribamar, no segundo andar da sede da CR Rio Negro da Funai, enquanto corria o atendimento de rotina no primeiro andar, lotado além do normal naquela manhã de quinta-feira, 23 de maio.

O motivo de tanto movimento, acima da média de 80 atendimentos diários, era o barco do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) ancorado um pouco antes da Praia Grande, a principal de São Gabriel da Cachoeira, da qual, com a cheia do Negro em curso, e subindo, não dava pra ver mais nada nem da areia nem dos primeiros, ou últimos, degraus da escada do calçadão. “Apesar de ter uma agência do INSS na cidade, aqui nunca teve um perito”, conta Ribamar, antes de enumerar casos de “mordida de cobra, quebrou o braço, caiu na cachoeira, bateu a cabeça”, comuns, segundo ele, na região. “Como veio agora a doutora no barco, a demanda está sendo muito grande”.

Samuel, Alberto e uma parente da comunidade de Pari-Cachoeira, com o neto

Além da perícia para o auxílio-doença, pedidos de registro indígena e declarações de vida, residência ou atividade rural, documentos necessários para a obtenção de algum benefício do governo federal ou estadual, estão entre os serviços mais comuns da CR Rio Negro da Funai. A declaração de residência, por exemplo, era o objetivo do agricultor Samuel Massa Lemos, do povo Tuyuka, do tronco linguístico tukano, que tinha viajado três dias de barco com um grupo de amigos e parentes da comunidade de Pari-Cachoeira, no Médio Itiquié, e reclamava da demora no atendimento, sem atinar com a presença do barco na praia da cidade. “Antigamente não era tão lento pra tirar declaração”.

Pouco versado no português, Samuel deixou para outros em seu grupo a participação maior na entrevista improvisada na entrada da Funai. “Ele tá cortando os benefícios e nossos filhos não vão poder ter bolsa de estudo”, disse, referindo-se a Bolsonaro, Alberto Vaz Pimentel, tukano, 49, professor multidisciplinar do ensino fundamental. “Não estou gostando nada dessa previdência. Não vou chegar aos 75 anos pra aposentar. Com sessenta, a maioria aqui já tá no céu”. No mesmo grupo, também do povo tukano, Neli Pimentel Fontes reforçou o discurso. “Trabalhamos mais que os brancos, e o branco fala que somos preguiçosos, mas não faz esforço como nós, porque fazemos tudo manualmente”. Nascida em Pari-Cachoeira, Neli está morando em São Gabriel porque é servidora municipal, uma das raras oportunidades de emprego na região. “A não ser quem é servidor ou militar, os demais aqui vivem de auxílio mesmo, 90% dos indígenas vivem de benefícios como o bolsa-família”, calcula José Ribamar.

Outro cálculo explica o barracão dos yanomami e o resto da população itinerante da cidade. “O cara gasta três dias pra vir da comunidade dele até aqui, pra receber trezentos, quatrocentos reais, que não dá nem pra pagar a gasolina da volta. Aí fica na cidade, esperando ajuda, vai na Prefeitura, vai na Funai, vai no Exército...”, explica o coordenador em exercício da Funai no Rio Negro. No caso dos yanomami do barracão próximo ao aeroporto, a espera era também pelo conserto de uma ponte da estrada. “Eles agora estão aguardando porque a ponte quebrou, não tem como eles voltarem, aí pede alimentação, pede tudo mais”.

“O cara gasta três dias pra vir da comunidade dele até aqui, pra receber trezentos, quatrocentos reais, que não dá nem pra pagar a gasolina da volta. Aí fica na cidade, esperando ajuda, vai na Prefeitura, vai na Funai, vai no Exército...”

Do avião, chegando ao aeroporto Uaupés, dá pra notar os círculos de árvores caídas, cortadas, que pode dar a falsa impressão de desmatamento. São as roças dos moradores da região, a maioria de mandioca brava, cultivada com a técnica conhecida como coivara, que combina queima, plantio e manejo de capoeira, usada também por comunidades quilombolas. Em 2010, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) reconheceu esta técnica como Patrimônio Cultural Brasileiro. Por ser zona úmida, o Alto Rio Negro não tem madeira atraente para o corte em larga escala. Não há serrarias por lá e a terra também não é boa nem para o agronegócio, nem para a pecuária. O risco à preservação atual da região é todo, portanto, da mineração.

“Começou a partir de 2015, surgiram novamente pessoas que vieram aqui visitar e tiveram interesse em explorar nosso território, trazendo discurso contrário ao movimento indígena, dizendo que a Foirn estava impedindo a entrada de pessoas que poderiam ajudar as comunidades”, contava Dzoodzo, na sala de reunião da sede da Foirn, no Centro de São Gabriel da Cachoeira, um dia antes da conversa tomando banho no Içana. “Veio essa política aí também, desde o impeachment (de Dilma Rousseff), refletiu pra cá. Agora, depois que esse presidente ganhou, esses empresários que têm interesse, parece que eles se sentem vitoriosos, porque acreditam que nessa gestão vai ser regulamentada a mineração em terras indígenas e que a partir da regulamentação, virá a revisão da demarcação da terra indígena e com isso eles vão entrar”.

Cada cor é um minério nas terras requisitadas por mineradoras no Alto Rio Negro

Uma das paredes da sala de reuniões da Foirn tem o mapa da Bacia do Rio Negro com suas terras, rios e comunidades. Outra tem o mesmo mapa, sem rios nem comunidades, com a divisão em cores em determinados pontos, vários quadrados colados, em várias cores, a maioria deles no alto da Cabeça do Cachorro. “Tudo isso aqui é regional do Içana. Todos esses quadradinhos já são áreas requeridas das empresas que estão registradas aqui, todas as empresas com seus códigos em cada pedacinho dessa área que tá intacta lá, ainda, mas é uma luta”, dizia Isaías Pereira Fontes, diretor-executivo da Foirn responsável pela regional do Içana, apontando o mapa da sala de reunião da sede da ONG, na véspera da entrevista com Juvêncio. “É essa questão de demarcação de terra que tende a segurar essa entrada de grandes empresas”.

Antes da vitória de Bolsonaro, o resultado das últimas eleições municipais de São Gabriel da Cachoeira, em 2016, já tinha sido de derrota para os defensores da preservação. Indígena, do povo tariano, Clóvis Moreira Saldanha, ou Clóvis Curubão, foi eleito prefeito pelo PT com 4.649 votos (30,19%), tendo como mote principal de sua campanha a defesa da mineração em terras demarcadas. O prefeito estava em viagem a Manaus dos dias 22 a 26 de maio. Em entrevista à BBC Brasil, em maio de 2017, disse que, no município, “todo mundo tinha medo de falar em mineração, então fomos a Manaus pedir ajuda aos políticos de lá”. Ex-garimpeiro, fundador de uma cooperativa indígena de mineração, Curubão afirmou ainda, na mesma entrevista, que “o índio está no século 21: usa motor, usa tudo. Não dá pra voltar ao passado”. O problema é que até agora, faltando menos de dois anos para terminar seu mandato, os projetos de mineração do prefeito não avançaram, muito por causa das demarcações das terras indígenas, mas também devido às dificuldades impostas pela maior protetora da região: a natureza.

Aos 50 anos, Isaias era o mais velho e tinha o mais alto cargo na hierarquia da Foirn entre os três integrantes da ONG que chegaram a Irari Ponta, na região do Baixo Içana, perto de uma hora da tarde da sexta-feira, 24 de maio, e saíram na manhã seguinte, por volta das 9h, logo após o café da manhã coletivo no centro comunitário. Além de Juvêncio, o coordenador do Departamento de Adolescentes e Jovens Indígenas do Rio Negro, Lucas Mattos da Silva, viajou na voadeira da Foirn com motor 40, o mais rápido para embarcações pequenas na região, que chega a navegar a 40 km por hora. Isaias pilotou durante todo o trajeto, na ida e na volta, o barco de oito lugares, onde também viajou o coordenador-técnico da Funai Rosiclaudio Cordeiro, há 15 anos responsável pela calha do Içana e cinco afluentes até Cuiaí, na fronteira com a Colômbia.

Subindo o Rio Negro, a caminho de Irari Ponta

A partir de São Gabriel da Cachoeira, subindo, o Rio Negro já não tem a imensidão de mar de alguns trechos mais próximos a Manaus, de onde, navegando no meio dele, não dá pra ver uma das margens e quase não dá pra ver a outra. É grande, ainda, mas sempre com as duas margens visíveis e mais barulhento. Apesar do artigo definido, o nome do município não se refere a uma queda d’água específica, e sim às corredeiras que logo na Praia Grande mostram sua força à distância segura dos dois pedaços de madeira alinhados, firmes dentro d’água, a cerca de quinhentos metros da escada do calçadão em parte submersa. Ali é o limite da areia que só aparece de setembro a janeiro e é, também, ponto de alerta para quem nada ou brinca ou somente se refresca no rio: dali, é melhor não passar. Um pouco antes da praia, próximo da casa na margem que serve de sede da Capitania Fluvial da Amazônia Ocidental, da Marinha, o rio é ainda mais caudaloso e a placa, vermelha, avisa para o risco de afogamento.

Saindo do porto de São Gabriel da Cachoeira, quem sobe o Negro não passa pela corredeira da Praia Grande. A cheia também ajuda e o destino está antes das piores cachoeiras, onde seria necessário sair e caminhar para pegar o barco mais à frente, pra que só o piloto, experiente, passasse com a embarcação pela corredeira. Outros trechos são ainda piores e obrigam que todos saiam e carreguem o barco por terra, até águas menos revoltas. No caminho para Irari Ponta, a voadeira da Foirn balança mais onde há concentração dos redemoinhos permanentes de espuma, que avisam das pedras embaixo, mas a viagem de cerca de três horas é tranquila, com a parada obrigatória, na metade do trajeto, no posto de controle fluvial da Ilha das Flores, do Exército, onde os barcos são revistados em busca de drogas, contrabando e, principalmente, bebidas alcoólicas. O soldado que conferiu o documento de Isaias e revistou, rapidamente, a voadeira da Foirn chegou a abrir os dois galões de gasolina transportados, para cheirar lá dentro antes de fechá-los e liberar a embarcação.

Nas comunidades do Alto Rio Negro, o antigo cacique é chamado de capitão. Em Irari Ponta, a patente é de Ovídio Júlio Cordeiro Pereira, do povo Baré, que, mais em nheengatu do que em português, recebeu a comitiva do movimento indígena para o almoço no centro comunitário, à base de farinha da mandioca brava local e do ensopado de Dakiru, peixe pequeno e gostoso, de carne branca e macia, do Içana. “Pesca, caça e roça tá suficiente pra gente levar a vida. Queremos terra livre pra pescar, caçar e fazer roça”, dizia Meraldino Cordeiro da Silva, Baniwa de 41 anos, presidente da Associação Indígena do Baixo Rio Içana (Aibri) e morador de Boavista, comunidade vizinha a Irari Ponta e considerada das maiores da região, com cerca de dois mil habitantes, situada bem no encontro das águas do Içana com as do Rio Negro.

Palestra no último dia da oficina

A demarcação contínua dos 11,2 milhões de hectares das terras da Bacia do Rio Negro, e não em colônias separadas, foi conquista do movimento indígena até hoje enaltecida. “Nossos líderes, que nos antecederam, conseguiram imaginar o futuro que aqui estamos”, disse Isaias, em frente ao mapa com os rios e comunidades da região, na sede da Foirn. “A gente sai daqui pra longe, pra pescar, caçar, fazer roça. Nunca vamos aceitar separação das terras”, afirmou Meraldino, no galpão do centro comunitário de Irari Ponta.

Aos 59 anos, o capitão da comunidade vive também da pesca, da roça e da caça, além do benefício de R$ 400 mensais que passou a receber depois de perder o dedo mínimo da mão esquerda, em 2016, quando pescava. “Foi Mandi, peixe pequeno, mas tem mordida forte, tipo arraia. Fui tirar do anzol”, contou Ovídio Pereira, de bermuda e camisa social de manga curta, o relógio prateado no pulso esquerdo e a sandália de dedo de dez entre dez indígenas das comunidades.

Capitão de Irari Ponta há 37 anos, eleito e reeleito de quatro em quatro pelos moradores, Ovídio, como todo mundo na aldeia, construiu a própria casa e ajudou, em mutirão, na construção das outras, todas em madeira, com telhado de telha ou palha, pintadas em pelo menos duas cores diferentes, cada. Ele mora atualmente com a mulher, Leonilda, e o sogro, Renê André, os dois do povo Baniwa, da comunidade de Ambaúba, a três horas de Irari Ponta subindo o Içana. Leonilda só fala baniwa e se manifestou durante a conversa com o marido uma vez, ao passar em frente à porta aberta da casa dizendo a frase da qual só deu pra entender o nome do presidente. “Ela tá perguntando se o Bolsonaro vai acabar com a aposentadoria dela”, traduziu Ovídio, revelando que o benefício da mulher é de R$ 950. A filha, mãe de cinco dos dez netos do casal, mora na casa ao lado, e o outro filho, pai dos outros cinco, é professor na comunidade da Guia.

Renê, Ovídio e Leonilda

“Moro aqui a vida inteira, gosto, me criei aqui, mas não tem mais tanto peixe”, afirma o capitão de Irari Ponta, dando a entender como o desmatamento acelerado, mesmo distante, atinge a região. “A gente tem de viajar quatro dias rio acima, pelo menos, pra conseguir peixe”. Ovídio estava a cinco dias de casa quando foi mordido pelo Mandi que lhe tirou o dedo. Em relação à caça, a conta é a mesma. “Pra conseguir cem quilos de carne, tem que viajar quatro dias”, reforça Renê André, o sogro do capitão de Irari Ponta que, aos 77 anos, o acompanha nas viagens, uma ou duas por mês, atrás do peixe e da anta, da paca, do macaco-prego, do macaco-barrigudo...

Mais longe ainda, nas áreas de fronteira com a Colômbia e do Pico da Neblina, está o ouro. “Para explorar lá tem que ser com máquina, porque é na pedra, então é difícil. Daqui até lá, você vai até o km 85 da estrada, aí pega uma voadeira, motor 40, anda um dia pelo rio até o local principal, aí começa a caminhada. Claro que a área é tão grande que você não vai dizer que não tem garimpeiro, mas é complicado”, diz José Ribamar. O chamado garimpo artesanal, aquele com peneira, nos rios, é liberado, mas, pelo menos em Irari Ponta, não desperta muito interesse. “Se a gente encontrar ouro, claro que a gente vai trabalhar, mas é de peneira, e assim tá difícil”, afirma Meraldino.

Dentro do Parque Nacional do Pico Neblina tem também, na terra indígena Balaio, o Morro dos Seis Lagos, cada um deles com a água de uma cor diferente, todos ricos em minerais como ferro, manganês e o já famoso Nióbio. Muito provavelmente deslumbrante, o lugar só recebe visitas para pesquisas, até porque chegar lá não é fácil, e para produzir minério, então, demandaria investimentos que, no momento, não compensariam, sem falar no desmatamento inevitável, em caso de mineração, deste paraíso isolado. “É a maior reserva de nióbio do país, só que pra explorar isso aqui, só daqui a cem anos, porque esse mesmo nióbio nós temos lá em Araxá, Minas Gerais, que é mais fácil. Aqui você tem que ter uma ferrovia, ligando pra Manaus ou pra outro lugar, Venezuela, e o nióbio ainda é um preço baixo, não compensa fazer”, avalia José Ribamar, bem de acordo com o último relatório sobre o minério exposto no site da Agência Nacional de Mineração.

Publicado em dezembro de 2017, mas relativo ao ano de 2003, o documento relata que a Companhia Brasileira de Metalurgia e Mineração (CBMM), que explora as reservas de Araxá, “supre todo o mercado nacional”. No mesmo documento, o antigo Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM), que deu lugar à Agência, afirmava que “em função da estabilização da demanda e oferta do nióbio no mercado mundial, em função do nível de reservas existentes para atender toda a demanda (...), não foram apresentados nem previstos projetos pela CBMM no ano de 2003”. No último tópico, como “outros fatos relevantes”, o relatório informa que “no dia 16 de outubro de 2003 a Cia de Pesquisas e Recursos Mineriais – CPRM - encerrou a licitação da maior jazida de nióbio do mundo, com cerca de 2,9 bilhões de toneladas, localizada em São Gabriel da Cachoeira-AM, na região de Seis Lagos”.

Anderson, de azul, e Meraldino, ambos Baniwa

De acordo com levantamento do DNPM, o Brasil tem 98% das reservas de nióbio em operação do planeta e 75% da produção nacional saem da jazida de Araxá, da CBMM, líder mundial, disparado, do mercado. Ao lado de Meraldino, no centro comunitário de Irari Ponta, Anderson Tomaz Ferreira, também Baniwa e morador de Boavista, fazia coro ao “parente”, como os indígenas da região, mesmo de povos diferentes, se chamam entre eles. “Não precisamos de muitas riquezas. A terra é mais do que apenas para cultivar e ganhar dinheiro. É conhecimento, cultura”.

Uns dizem que a maioria da população defende a mineração, outros afirmam que a divisão é meio a meio e há quem diga que, ultimamente, diante da falta de avanço nos projetos da cooperativa de minério, a defesa da demarcação tem ganhado força entre os moradores do Alto Rio Negro. Não há pesquisa sobre o tema, mas a opinião do vereador do PSL Basílio Rodrigues, 42 anos, Coripaco da comunidade de Jerusalém, no Alto Içana, a três dias de barco motor 40 de São Gabriel da Cachoeira, ilustra bem as dúvidas e receios até de quem é a favor da mineração. “Eu sou a favor, mas na minha região mesmo, no Alto Içana, a maioria é contra, então eu respeito, por isso não estou, assim, lutando, não”, afirmou o vereador, na quinta-feira, 23 de maio, em entrevista no gabinete dele na Câmara.

Basílio está no primeiro mandato. Ele saiu de sua comunidade, onde trabalhava como agente de saúde, aos 37 anos, para fazer o curso técnico de enfermagem em São Gabriel da Cachoeira. “Quando concluí o curso, entrei na campanha e acabei participando da política”, conta o vereador, atual vice-presidente da Câmara Municipal, que, mesmo favorável, mantém seu pé atrás em relação à mineração. “O garimpo conseguiu funcionar várias vezes, e em vez de beneficiar acabou destruindo algumas famílias em algumas comunidades. A gente chamava os que mexem na mineração pra ver onde estava realmente (o minério), só que eles nunca foram transparentes, os empresários, técnicos, sempre escondem alguma coisa, vêm dizendo, ‘não, viemos aqui ajudar’, mas eles vêm querer forçar a gente pra fazer abaixo-assinado, mas pra eles, a gente fica pra trás, por último na fila. Por isso que, se eu concordasse, teria de ser uma negociação bem longa, bem fechado mesmo, num acordo sério. O empresariado iria trazer maquinário, apenas viriam pra mostrar quais são as pedras preciosas, os valores reais, mas isso nunca vai existir, porque cada um só pensa no próprio interesse, esse é o problema”.

“O garimpo conseguiu funcionar várias vezes, e em vez de beneficiar acabou destruindo algumas famílias em algumas comunidades."

Os garimpos do Alto Rio Negro começaram a ser explorados na década de 70, quando havia apenas um pequeno posto da Funai para toda a região. Aproveitando a ausência do Estado, empresas como a Paranapanema e a Gold Amazon tomaram para si a Serra do Porco, no Alto Içana, onde o ouro já era garimpado pelos indígenas de maneira artesanal, na peneira. Com a chegada do homem branco, com todo o maquinário das empresas, os indígenas foram proibidos de garimpar e passaram a conviver com a rotina da bebida, das drogas, da prostituição e dos conflitos terminados em morte. Não foi diferente, a partir de meados da década de 80, nas serras do Caparro e do Traíra, essa mais perto de outro afluente do Negro, o Rio Tiquié, no distrito de Pari-Cachoeira.

Ex-presidente da Foirn, Baniwa da comunidade de Tucumã, no Médio Içana, André Fernando Baniwa era criança ainda, mas não esquece o que escutou na época. “Estudava na quarta série, já entendia alguma coisa de português. O cara chegava com o capitão assim, dizendo, ‘somos garimpeiros, trabalhamos com dinheiro, como está a sua comunidade? Cadê escola? Cadê casa de saúde? Não tem? Nós vamos trazer isso, vamos trazer aqui escola, vamos pagar professor, vamos trazer hospital, vocês não vão adoecer mais’”, lembrou André, na manhã de segunda-feira, 27 de maio, numa padaria do Centro de Manaus, onde está morando por questões familiares. Segundo ele, foram extraídas “trinta, cinquenta toneladas de ouro” do Alto Rio Negro sem quaisquer benefícios aos Baniwa, que tiveram suas lideranças cooptadas pelas empresas. “Deixaram o Içana sem liderança, assim que fizeram com os líderes da época, então a gente não sabe exatamente o que aconteceu, o que a gente viu é que a empresa deu um barco para o trecho de Nazaré até Vista Alegre e deu o equivalente a mil reais a cada comunidade, pra abrir cantina”.

Sede da Funai em São Gabriel da Cachoeira

No início da década de 90, quando retornou à Funai, após encerrar seu mandato na prefeitura de São Gabriel da Cachoeira, José Ribamar se deparou com a mineração em terra indígena em pleno andamento. “Fui a Brasília e perguntei: que que tá acontecendo? Essas empresas, vocês autorizaram? ‘Não, eles pediram autorização pra fazer uma pesquisa’. Só que eles não estavam fazendo pesquisa, estavam explorando”, conta o ex-prefeito. As empresas tiveram de sair da região, deixando, pelo menos, uma nova sede para a Funai, de dois andares, bem em frente ao Rio Negro. “Saíram na boa. Essa casa aqui eu tive até que comprar deles”, revela Ribamar.

Depois disso, a quantidade de garimpeiros se aventurando pela terra indígena se limitou a pequenos grupos reprimidos e desmembrados, de quando em quando, por operações do Exército, até que Michel Temer assumiu a Presidência da República. No dia 24 de junho do ano passado, a Folha de São Paulo informou que Elton Rohnelt, assessor do então presidente Temer, e o empresário paulista Otávio Lacombe vêm tentando convencer comunidades Baniwa da Bacia do Içana a praticar a mineração, e que o objetivo principal é a tantalita, usada pela indústria eletrônica, principalmente, nos smartphones. Ex-dono de garimpo, ex-deputado federal por Roraima, Rohnelt fundou a Gold Amazon nos anos oitenta e, recentemente, deixou 10% da empresa em nome de sua filha, Carolina, e vendeu 90% à Lacombe.

“O pai desse Lacombe (Octavio Lacombe), nas décadas de 70 e 80, levou apoio para as comunidades em troca de entrar no garimpo que os Baniwa tinham descoberto, então, nesse período que essas empresas andaram ali, fizeram vários requerimentos de pedaços de terra para prospecção mineral, e hoje o pai dele já faleceu, mas ele volta com toda força”, conta André Baniwa. Segundo a matéria da Folha, Lacombe comprou o controle acionário de outras duas mineradoras fundadas por Rohnelt, a Edgar Rohnelt (em homenagem ao pai do ex-assessor de Temer) e a Sergam. Juntas, as três empresas têm 95% dos requerimentos de pesquisa representados pelos quadrados coloridos do mapa da Cabeça de Cachorro exposto na sede da Foirn.

"Quando ele demonstrou o plano de exploração, o custo de cada quilo de tantalita e no final quanto ficaria pra quem ia extrair, era menos do que uma lata de farinha."

Tomando como base o Estatuto do Índio, de 1973, que permite a garimpagem rudimentar, os dois estariam pressionando pela aprovação do Projeto de Lei 1610/96, do senador Romero Jucá (MDB-RR), que prevê prioridade para os pedidos das empresas de Lacombe e Rohnelt no Alto Rio Negro em seu Artigo 19, ao deliberar que “os requerimentos de autorização de pesquisa e de registro de licença que objetivem as áreas situadas em terras indígenas, e que tenham sido protocolizados antes da promulgação da Constituição de 1988, serão analisados pelo órgão gestor dos recursos minerais, para fins de declaração de prioridade”.

Para tentar convencer os moradores da região, Lacombe tem participado de reuniões desde 2016 em comunidades como a Castelo Branco, onde André Baniwa esteve diante do empresário. “Fui ouvir pra ajudar a esclarecer os direitos indígenas. Ele falou do mesmo jeito que o pai dele e eu perguntei isso, e ele falou: ‘não interessa o passado’. Só que os Baniwa já sabem mais do que naquela época, matemática, já entendem mais português também. Quando ele demonstrou o plano de exploração, o custo de cada quilo de tantalita e no final quanto ficaria pra quem ia extrair, era menos do que uma lata de farinha. Ele fracassou aí, as comunidades saíram na hora, melhor trabalhar minha farinha do que trabalhar pra ele, disseram, mas existe ainda o risco”.

A Constituição de 1988 admite a possibilidade de mineração em terras indígenas, desde que a atividade seja regulamentada pelo Congresso, com as comunidades sendo ouvidas e recebendo participação nos lucros. O projeto de lei de Romero Jucá, aprovado no Senado na década de 90, está parado desde então na Câmara. Agora, o Poder Executivo resolveu fazer a sua parte e o Ministério de Minas e Energia avalia aproveitar o texto do senador do MDB para regulamentar a mineração em terras indígenas, uma das principais promessas de campanha de Bolsonaro. No sábado, 27 de julho, o presidente disse, durante a formatura de paraquedistas das Forças Armadas na Vila Militar do Rio de Janeiro, que indicou seu filho, o deputado federal Eduardo (PSL-SP), para a embaixada do Brasil em Washington para ir atrás de investidores interessados na extração mineral em terras indígenas.

Basílio Rodrigues, vereador

Por enquanto, as homologações continuam impedindo qualquer base legal para a mineração, e dificultando também, em nome da preservação, outros investimentos em terra demarcada, como a abertura de estradas vicinais, prioridade do mandato de Basílio Rodrigues. “Não quero saber se tá demarcada ou não, contanto que pelo menos solucione o nosso sofrimento, já foi óbito em várias comunidades lá nas cachoeiras, isso é impossível”. Segundo ele, os inúmeros obstáculos a investimentos em terras demarcadas têm reduzido o apoio às demarcações entre os próprios moradores das terras indígenas homologadas. “Vejo a minoria defendendo as demarcações, a maioria já tá tipo fora, quem defende são principalmente ambientalistas”, especula o vereador, para em seguida admitir não saber “como é que fica, assim, certo mesmo, porque a gente não tem como acompanhar quase todo dia as comunidades, é longe pra viajar”.

Se o cacique é chamado de capitão, mais do que pajé, as comunidades do Alto Rio Negro têm pastor, e o posto em Irari Ponta, há 21 anos, é de Hermes Pereira, Baré, que dá seus cultos aos sábados, domingos e às quartas-feiras, na igreja branca, de porta, detalhes e janelas azuis como o nome no alto, “Congregação Batista”, na entrada virada não para o campo de futebol, como quase todas as outras casas, mas para o Rio Içana; e embaixo, na mesma cor: “Bíblica Aliança”. Hermes é favorável à demarcação e concentra suas reclamações contra o prefeito atual, que “não ajuda”. A mulher do pastor, Flávia Santos da Costa, também Baré, já tinha reclamado minutos antes. “A Prefeitura só ajuda comunidade grande, como Boavista”, disse ela, que nasceu na comunidade da Guia e, apesar das dificuldades, não pensa em sair de Irari Ponta. “É difícil roçar essa terra, mas gosto daqui”.

Por ser pequena, Irari Ponta conserva o hábito das refeições coletivas. Principalmente no café da manhã, mas também no almoço ou jantar, todos se encontram para comer, beber e conversar no centro comunitário, ou quase todos, porque não há imposição, nem ordem de alguém para isso, nem nada parecido. Hermes e Flávia tinham a companhia passageira do filho, Jorge da Costa Pereira, 29, que tem uma casa e uma filha de três anos em São Gabriel da Cachoeira, onde tenta tirar a carteira de habilitação, depois de dar baixa do Exército, onde serviu de 2012 a 2018. Enquanto era servido o jantar no centro comunitário, pai, mãe e filho receberam os representantes da Foirn e da Funai na cozinha espaçosa da casa da família, com a mesa de oito lugares, a rede pendurada no canto e as estantes de madeira carregadas de potes ou latas de antigas embalagens, encostadas à parede até o fogão de quatro bocas ligado ao botijão de gás.

Cozinha com o forno, à direita, para a farinha e o beiju

A casa tem mais duas cozinhas, na verdade barracões, um sem paredes, só com o teto de palha e o forno circular com o buraco para a lenha e a bandeja igualmente redonda em cima, grande, metálica, onde é assado o beiju, também conhecido como tapioca, e é feita a farinha da mandioca brava. A outra cozinha tem outro tipo de fogo artesanal, menor, usado só quando não há gás. Perguntada sobre onde prefere cozinhar, Flávia responde de pronto, sem pensar: “no fogão a gás’, e reclama: “o gás é difícil, toda hora tá faltando”.

O prato principal do jantar, o mesmo peixe Dakiru do almoço, ensopado, foi feito no fogão e só não foi mais apreciado porque menos de meia hora antes, na saída do banho no Içana, Rosiclaudio, da Funai, e Lucas Mattos, da Foirn, apareceram com dois peixes, Aracu e Jaraki, que tinham acabado de ser como que defumados num dos fornos redondos da comunidade, era só abrir a escama dura cortada como se fosse tampa, pegar com a mão um pedaço, passar no sal e no molho de tucupi, igual ao shoyu ou molho inglês, e comer ao ar livre, na escuridão do Alto Rio Negro.

Lucas tem 22 anos e é tariano de Iauaretê, na fronteira com a Colômbia, bem no ponto em que o Rio Uaupés, que batiza o aeroporto de São Gabriel da Cachoeira, entra no Brasil. “Dizem que os povos aqui passam fome, morrem de desnutrição, mentira”, disse, à tarde, o jovem que entrou no movimento indígena aos 19 anos e atua ainda como locutor, um dos 18 comunicadores da Rede Wayuri, de rádio, espalhados pela bacia do Rio Negro. “A rede combate as fakenews. A gente tem que tá unido em várias questões, saúde, educação. A juventude é o presente futuro”. Operadora de saúde em sua comunidade, Laura Mirtes Almeida, 31, tariana, estava na oficina de Irari Ponta e é também correspondente da Rede Wayuri, em Assunção do Içana. “Há muita falta de informação, mentira, e você chega com o correto, tem as pessoas que tentam desvirtuar para o lado deles, a gente volta e explica de novo”.

“Temos 176 estações de rádio. Elas que dão informação, se tem invasor, ou algum guerrilheiro, a gente informa de vez em quando o próprio Exército, ou se houve acidente lá, pra fazer resgate.”

A fila em frente à sede da Foirn em São Gabriel da Cachoeira tinha oito, nove pessoas e crescia lentamente na tarde de quarta-feira, 22 de maio. Todos esperavam a abertura das duas horas diárias de transmissão da estação de rádio da sede da ONG, para se comunicar com suas comunidades. “Temos 176 estações de rádio. Elas que dão informação, se tem invasor, ou algum guerrilheiro, a gente informa de vez em quando o próprio Exército, ou se houve acidente lá, pra fazer resgate”, explica Isaías. As estações de rádio fazem parte da Rede Wayuri, que tem como principal serviço a circulação do boletim de áudio Wayuri, que está chegando à trigésima edição. Todos os boletins estão disponíveis na internet, no soundcloud, e são distribuídos pelo whatsApp. Na estação da sede da Foirn, o tempo de transmissão é dividido para mensagens entre a cidade e as comunidades, questões de saúde e do movimento indígena, e a preocupação com as fakenews é constante.

“A gente já foi vítima de um fake um tempinho atrás, isso deu trabalho”, lembrou, na manhã de domingo, 26 de maio, num café do Centro de São Gabriel da Cachoeira, o presidente da Foirn, Marivelton Rodrigues Barroso. “Pegaram um vídeo de uma reportagem da Globo, que um ex-diretor da Foirn diz que a gente geriu na época do convênio da Saúde, R$ 11 milhões, só que o pessoal recortou como se a gente tivesse ainda executando essa coisa, um teto de R$ 11 milhões pra promover ações nas comunidades, e não era verdade, mas isso potencializou aqui na cidade, que tem muita gente contra aqui, existe uma certa resistência forte entre a população”.

De acordo com Marivelton, o orçamento da Foirn chega a R$ 1,6 milhão por ano e a maior parte vem de fora do país, de organizações como a Aliança pelo Clima, gerida pela Áustria, que engloba diversas prefeituras de toda a Europa para receber doações de cidadãos europeus que acreditam na importância da preservação da Amazônia. “Esse R$ 1,6 milhão tem que dar conta de viajar nessas cinco regiões onde a gente atua, durante 12 meses, sendo que parte disso fica na sede, serviço de internet, tem nosso pessoal, cinco pessoas, tem os veículos, a manutenção das embarcações, digamos que isso chegue a 55%, 60% do orçamento fixo”. Sobram 40% para o resto, incluindo as viagens a comunidades como Irari Ponta.

Preparando a foto oficial da oficina de meliponicultura

Meliponicultura é produção de mel, como a apicultura, mas com abelhas sem ferrão. A oficina de Irari Ponta reuniu nove dos 17 produtores que trabalham com o instrutor Genilton Apolinário, da comunidade de Tunuí, a um dia de viagem subindo o Içana. Embrionário, o projeto é mais uma tentativa da Foirn de fomentar um modo sustentável de ganhar a vida para os habitantes da região, assim como a cestaria de arumã, produto que inaugurou a primeira marca indígena do país, Baniwa, lançada em 2000, nos 500 anos do descobrimento do Brasil, quando o presidente da Foirn era André Baniwa. “Desci de Tucumã pra São Paulo, eu, minha esposa, meu pai, meu irmão, minha irmã, praticamente a família é que esteve comigo, que muitos não queriam, eu chamava as pessoas pra ir, mas eles tinham medo de ir. Tinha uma senhora que a gente queria que fotografasse e ela tinha medo da barba do fotógrafo”.

Difundida por chefs famosos, como Bela Gil e Alex Atala, a pimenta Baniwa é a grande estrela da marca, mas nem ela, muito menos as outras tentativas de negócio sustentável foram capazes de provocar mudanças significativas na rotina de carências dos moradores da região. “As associações começam a mandar produzir, o artesão, agricultor, produz e, não passa nem um, dois, cinco meses, terminou. Aí começa a correr outros projetos, não tem uma continuidade”, diz o vereador Basílio, que não vê progressos nem no produto mais rentável da marca Baniwa. “Em Tucuí temos casa de pimenta, Canadá, tem casa de pimenta, só que a comunidade, em geral, não tá se sentindo beneficiada, conseguindo renda pra viver, nem na pimenta, que tá no mundo”.

André Baniwa reconhece que os programas “não têm velocidade pra demonstrar resultado em grande quantidade em pouco tempo”. “São de longo prazo. Trabalhamos a geração de renda, mercado, plano, marca, mas não são coisas rápidas, é difícil assimilar isso pra dentro da sua cultura”, diz o ex-presidente da Foirn, que não vê outro caminho. “É o que vai caminhar pra criar negócio, isso leva tempo, a pimenta, a castanha (uará, ou castanha do Rio Negro), o tucupi, cestaria, agora o mel, são trabalhos importantes, mas não têm a velocidade que o mercado exige, que no outro dia vendemos toneladas, não vai ter isso”.

As iniciativas de negócio sustentável na Bacia do Rio Negro fazem parte do projeto Territórios da diversidade socioambiental, uma parceria entre a Foirn e o Instituto Socioambiental (ISA), organização não-governamental que também tem sede em São Gabriel da Cachoeira.

"Ninguém nunca quer aceitar uma agenda de trabalho num mosaico de áreas protegidas. A gente sonha com isso, que a gente pudesse mostrar que é possível, desde desenvolvimento comunitário, enfim, a própria sobrevivência física.”

Os projetos estão previstos no Plano de Gestão Territorial e Ambiental (PGTA) Wasu do Rio Negro, como foi batizado o documento aprovado por cerca de 300 lideranças dos 23 povos da região, durante a 16ª Assembleia Geral Ordinária da Foirn, de 27 de novembro a 1 de dezembro de 2018. Os PGTAs estão na Política Nacional de Gestão Ambiental e Territorial das Terras Indígenas (PNGati), instituída pelo Decreto federal 7.747, de 5 de junho de 2012. “Tem aqui bastante acúmulo de experiências e estratégias traçadas, um plano regional de desenvolvimento sustentável que sequer os entes federais têm abraçado isso. Ninguém nunca quer aceitar uma agenda de trabalho num mosaico de áreas protegidas. A gente sonha com isso, que a gente pudesse mostrar que é possível, desde desenvolvimento comunitário, enfim, a própria sobrevivência física”, afirma Marivelton.

Da etnia Baré, o atual presidente da Foirn é do município de Santa Isabel do Rio Negro, onde funciona, desde 2014, o projeto de pesca esportiva no Rio Marié. “A gente teve apoio institucional da Funai, com acompanhamento do Ministério Público Federal e o Exército também teve um papel fundamental, quem guarneceu toda fiscalização, por mais de cinco meses ali na foz do Marié, pra estruturar. A gente tem trabalhado constantemente a questão do turismo”, conta Marivelton. As expedições a comunidades da Bacia do Rio Negro elaboradas em conjunto por associações ligadas à Foirn, pela Funai, ISA e Ibama começaram no ano passado, em parceria com a Garupa, ONG especializada em turismo sustentável. Agora, as organizações finalizam um projeto de turismo para o Pico de Neblina, junto com o povo yanomami.

José Ribamar, ex-prefeito de São Gabriel da Cachoeira

Uma das organizações mais tradicionais do movimento indígena, a Foirn foi fundada em 1987, como consequência do segundo momento de maior investimento em São Gabriel da Cachoeira, durante o Projeto Calha Norte, do governo José Sarney. “Era um projeto de fortalecimento das instituições, pra proteger a fronteira, botaram pelotões, cada pelotão era pra ter Funai, Ibama, Polícia Federal, Marinha, todo mundo. Dividiu a população no início, mas criou-se uma força muito grande entre eles e lutaram pela demarcação das terras, então, hoje, São Gabriel da Cachoeira, quase todas as terras são indígenas mesmo”, conta Ribamar, que foi prefeito durante o Calha Norte.

“No período que eu entrei, o Collor entrou, e foi o pior período da minha vida, porque ele parou tudo. Tinha projeto de instalação de 14 postos indígenas, foram 14 pistas de pouso, o aeroporto mesmo da cidade foi ampliado, e a primeira coisa que ele fez foi vender os aviões da Funai”. Diante das dificuldades, Ribamar se orgulha de ter concluído pelo menos as obras em andamento quando assumiu o município. “Não ficou nem uma obra parada, mas foi um período muito ruim pra mim, de estresse”.

José Ribamar conseguiu ainda um feito raro na história política da cidade: elegeu seu sucessor, Juscelino Gonçalves, que viria a se eleger novamente em 2004, para ser o prefeito responsável pela oficialização das línguas indígenas no município, em 2006, e entregar o cargo a uma chapa histórica, a primeira 100% indígena do Brasil a ser eleita, com o tariano Pedro Garcia como prefeito, pelo PT, e como vice, pelo PV, André Baniwa. “Foi conflituoso. Fizemos aquela vitória histórica, mas teve problema logo depois, que é Pedro mudar totalmente o que a gente tinha previsto de fazer. Nós brigamos muito, antes de assumir já estávamos brigados. O projeto que a gente tinha na cabeça, ele não quis mais fazer”, conta o ex-vice-prefeito, que atribui a atitude do ex-companheiro de chapa a “gente por trás” dele, a uma “turma ruim” do PT de Manaus. André se candidatou na eleição seguinte, vencida por Renê Coimbra (PCdoB), e ficou em sexto lugar, com 6,39% dos votos, atrás de Pedro Garcia, que ficou em quarto, com 8,99%.

Os resultados das duas últimas eleições na cidade provam, segundo Basílio Rodrigues, que a maioria é contra as demarcações. “Quem defende as demarcações são as próprias organizações indígenas, e quando eles lançam candidatos deles não vão ganhar”. A julgar pelo resultado da última eleição presidencial, porém, o raciocínio embola. Fernando Haddad (PT) teve 77,58% dos votos no segundo turno, contra 22,42% de Bolsonaro (PSL), que não teve o voto de um vereador de seu partido em São Gabriel da Cachoeira. “Votei no Haddad, porque respeitei a decisão do povo, da comunidade. Eles já estão começando a entender a política, ouvindo, acompanhando. Não tenho nem força de chegar e inverter isso”, disse Basílio, horas antes da plenária de toda quinta-feira à noite, na Câmara Municipal.

“Quem defende as demarcações são as próprias organizações indígenas, e quando eles lançam candidatos deles não vão ganhar”.

Na sessão ordinária de 23 de maio, o tema principal foi o pedido de instauração de CPI para investigar o fornecimento de merenda escolar nas comunidades, feito pelo vereador Lindelbar Garrido (PRB). “Já passaram quatro ou cinco prefeitos, sempre chega atrasada, faltando 15 dias pra entrar nas férias, primeiro semestre, aparece merenda escolar. Subi semana passada pra minha região, ainda não chegou até a última escola”, contava Basílio, em seu gabinete. Convidado a prestar depoimento, o secretário municipal de Educação, Rosivaldo Brazão Lopes, conseguiu não responder diretamente a qualquer pergunta feita a ele. “Cada departamento da secretaria se responsabiliza pela parte dele, e eu direciono a palavra a quem seriam responsáveis pelo setor”, disse o secretário, na primeira resposta e da mesma forma, com poucas diferenças, nos questionamentos seguintes, o que provocou reprimendas públicas de dois vereadores. “Um secretário precisa acompanhar, não só delegar aos outros”, disse Otacila Lemos (DEM). “O senhor demonstra despreparo total na pasta”, emendou Feliciano Borges (PSL), também conhecido como Sargento Borjão. No fim da sessão, que contou com a presença de 12 dos 13 vereadores do município, a CPI foi aprovada por unanimidade.

Sessão plenária na Câmara de São Gabriel da Cachoeira

Se a merenda não chega, a educação escolar indígena, mesmo sem estrutura, com a maioria das escolas ao ar livre, é elogiada até por quem não economiza críticas ao movimento. “O movimento indígena tá mantendo educação escolar indígena, as línguas, a cultura, essas coisas tá avançando muito, mas na parte de estrutura...”, disse Basílio Rodrigues. A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (9.394), de 1996, garante ao indígena, em seu Artigo 32, o ensino na língua materna, além do português. O Ato das Disposições Gerais e Transitórias da Constituição de 1988, em seus artigos 78 e 79, diz que é dever do Estado oferecer educação escolar bilíngue e intercultural, que valorize as práticas socioculturais de cada comunidade.

Na Bacia do Rio Negro, segundo André Baniwa, o avanço começou a partir do ano 2000. “Criamos nossa escola. Não tínhamos professor nenhum e hoje temos mais de duzentos professores com magistério, com licenciaturas nas universidades, alguns que começaram a estudar dentro de nossas escolas”. Juvêncio Cardoso é um deles. “Fui da primeira turma de alunos que estudou na primeira escola indígena criada no âmbito desse movimento”, conta o coordenador da Foirn, no momento cursando o mestrado em rede nacional para o ensino de ciências ambientais, na Universidade Federal do Amazonas (Ufam). “Na época tínhamos apenas duas escolas de ensino fundamental na região, hoje temos 25, entre aspas, criadas, mas a maioria sem prédio escolar”.

Escola em São Pedro, no Alto Rio Negro

Não é coincidência, portanto, a quantidade de indígenas professores neste texto, como Tiago Paché, professor multidisciplinar, que na noite de Irari Ponta, já encerrada a oficina, relatava o que tinha acontecido de incomum, recentemente, na comunidade dele, Barcellos, na margem do Rio Iauiari, já quase na Colômbia. “Chegou um capitão lá do Exército dizendo que ele agora mandava na comunidade, que o presidente tinha autorizado, mas chegou falando isso sozinho e o pessoal não aceitou essa conversa, não, ele acabou indo embora”. Mais cedo, Meraldino Cordeiro tinha contado um caso mais grave. “Mataram um cara lá em Inambu (comunidade na margem do Rio Ayari), indígena, tava pescando, foi tiro. Agora que isso tá acontecendo perto das comunidades, as pessoas estão mais à vontade pra entrar aqui na nossa terra”, afirmou o presidente da Aibri, que já planeja alguma ação em resposta. “Vamos nos juntar pra não deixar invadirem nossas terras, fazer fiscalização, pensar o que pode ser feito”.

Entre as opções, o conflito não está descartado. “Antigamente tinha tambor que a gente batia antes do contato. Exército indígena, para não ser atacado, já tinha essa organização”, lembrou Anderson Tomaz Ferreira, que também é professor da educação escolar indígena. Ao lado dele, Meraldino emendou: “Pode ser que uma hora vamos ter que levantar as flechas”. Um pouco atrás, também na conversa sob o telhado do centro comunitário de Irari Ponta, o irmão de Meraldino, Enoq, começou brincando com a situação, lembrando que podiam agora levantar flechas, pistola e espingarda, já que Bolsonaro “quer facilitar pra comprar arma”, mas ele mesmo logo viu o outro lado. “Arma potente é cara, pra nós vai complicar, ficar mais perigoso”.

“Pode ser que uma hora vamos ter que levantar as flechas”.

Na segunda-feira, 29 de junho, a alta comissária da Organização das Nações Unidas (ONU) para Direitos Humanos, a ex-presidente chilena Michelle Bachelet, condenou a morte do cacique Emyra Waiãpi, de 62 anos, líder da Aldeia Mariry, no Amapá. O povo Waiãpi denunciou a invasão da aldeia no sábado, 27, por garimpeiros. Filho de Emyra, Aikyry Waiãpi afirmou que o pai morreu em confronto com invasores. Bachelet, em comunicado oficial, afirmou que a morte do cacique é “sintoma perturbador do crescente problema de invasão de terras indígenas – especialmente florestas – por mineiros, madeireiros e fazendeiros no Brasil”. No mesmo dia do comunicado da alta comissária da ONU, o presidente Jair Bolsonaro disse que não havia, ainda, “nenhum indício forte” de que o líder indígena tivesse sido assassinado. No último dia 16, a Polícia Federal divulgou o laudo da Polícia Técnica do Amapá que não viu sinais de violência no corpo do cacique, sugerindo afogamento como causa provável da morte. Emyra não foi a primeira liderança indígena morta este ano. Em fevereiro, o cacique Tukano Francisco de Souza Pereira, 53, foi assassinado a tiros na casa onde morava, em Manaus, na frente da mulher e da filha de 11 anos.

Café da manhã no centro comunitário

O Alto Rio Negro também tem suas histórias de conflitos. “Já aconteceu, final dos anos 70, na década de 80, por exemplo, com meu tio, Augusto Rodrigues. Os caras chegaram, pediram pra mostrar o caminho pra Serra do Porco, e eles precisavam da ajuda da comunidade pra carregar a draga. É pelo mato, dentro”, conta André Baniwa. O trato, segundo ele, era que os garimpeiros pagassem com ouro pelo serviço, que incluiu a abertura de uma pista de pouso. “Não pagaram, então juntou gente disposta a enfrentá-los, sem espingarda, mas com borduna, pintado, e os guerreiros fizeram isso, expulsaram os caras. Meu pai participou, meu irmão entrou nessa guerra, foram lá, assustaram eles e saiu todo mundo”.

Ainda segundo o relato do ex-presidente da Foirn, os garimpeiros conseguiram se comunicar com um pelotão do Exército em São Joaquim. “Eles tinham um meio de comunicação que ninguém percebeu, deviam ter pacto com os militares na época. Subiram, pegaram o chefe dos índios, e o Exército não podia fazer isso, mas maltrataram ele, colocaram ele pra dormir em cima do fuzil, mas não surraram ele. Quando os guerreiros souberam, juntaram cinquenta espingardas, porque todos já tinham sido garimpeiros, já tinham comprado uma espingarda, os índios, então pegaram cinquenta pessoas e estavam dispostos a voltar na direção pra matar os caras, só que, talvez por sorte deles, os militares soltaram o chefe e por isso não aconteceu nada”.

"Aprendemos muito, tem instrumentos pra você fazer acordo, não é mais como antigamente, mas, se vier a acontecer alguma coisa, pode acontecer pior ainda”.

Outro caso nos anos 80, esse envolvendo o povo tukano, acabou, segundo André, em morte. “Mataram uns dez ou quinze, pra poder respeitar eles lá, porque chegaram mandando, escravizando os caras”. André evita sair de casa quando acontece algum ataque de indígenas ao homem branco. “Fico até com medo de andar na cidade. É muito perigoso. A gente não gostaria que acontecesse isso. Aprendemos muito, tem instrumentos pra você fazer acordo, não é mais como antigamente, mas, se vier a acontecer alguma coisa, pode acontecer pior ainda”.

À noite, com a brisa esporádica, o clima refresca em Irari Ponta. Terminada a oficina de meliponicultura, um grupo vai conversar ao ar livre, perto do pavilhão do campo de futebol, outro se dirige pra mais perto da margem do rio, na direção da casa com o maior número de redes amarradas, onde os visitantes de outras comunidades dormiram as quatro noites por lá, e há quem fique no centro comunitário mesmo, contando história e rindo, como Carlos de Jesus, Juvêncio, Lucas, Laura, Rosiclaudio e Isaías, que é mais otimista em relação à possibilidade de grandes conflitos no Alto Rio Negro. “No estado do Amazonas a gente nunca chegou no limite, como está no Sul do Pará, que envolve muitas fazendas, agropecuária. Lá são terras limitadas, se ultrapassar o fazendeiro na mesma hora atira. Aqui, por enquanto, ainda estamos no bem viver, que a gente fala, com a preservação, sem ter o trator do lado do seu território, derrubando, ainda não temos essa exploração grande”, disse o diretor da Foirn, na entrevista na sede da ONG.

Escudo desenhado na parede do quarto, em Irari Ponta, no Alto Rio Negro (AM)

Em Irari Ponta, como todos na roda da conversa, Isaias ria de Carlos de Jesus, de novo o condutor principal das histórias, uma delas sobre quando estava servindo no Exército e subiu o Pico da Neblina. “Muito frio, difícil, mas chegar lá no topo é lindo, dá uma emoção, tem um livro, você escreve o teu nome lá, no lugar mais alto do Brasil”, contava o professor, pouco antes de todos irem dormir, lá pelas dez, onze, no máximo meia-noite. No quarto, sozinho, com o escudo do Vasco pintado na parede entre outros desenhos, um deles do Wolverine, com a rede e o mosquiteiro, mais a proteção das águas do Içana, intensamente minerais como as do Negro, com muito menos mosquitos, a noite foi tranquila, até o despertar nos primeiros raios do dia, a tempo de ver o capitão, Ovídio, saindo de sua casa atrás do gol do outro lado do campo, carregando o bandejão com as bacias do beiju e do biscoito maisena. Ovídio depositou a bandeja na mesa e foi até o cano pendurado pela corda que é o sino, que o capitão tocou batendo com outro cano, avisando a todos que o café da manhã estava servido.

Depois, feitas as despedidas das comitivas de outras comunidades, os apertos de mãos em fila, partiu também o pessoal da Funai, da Foirn, dando carona a Carlos de Jesus, que ficou em Boavista. Após deixar o parente, amigo, Isaías fez a volta com a voadeira na foz do Içana pra subir um pouco mais o Negro até a comunidade de São Pedro. “Vamos comprar peixe”, avisou. Menor que Irari Ponta, São Pedro tem também igreja evangélica e, ao contrário da outra, onde as crianças estudam em Boavista, tem o casarão da escola, vazio naquela manhã de sábado, quando o pescador levava seus clientes até as gaiolas feitas de frisas de madeira, que boiavam amarradas a bambus, com os peixes presos nas águas do Negro, vivos. “É o freezer dele”, brincou Isaías, já com as compras no barco, antes de dar a partida novamente na voadeira pra começar a descer o rio sob a chuva fina, numa das regiões mais preservadas da Amazônia, onde, apesar do acesso difícil, também aumentaram as invasões, as ameaças de conflito.



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